Testemunho de Dulce Gil
Não sou imortal
Para mim, é sempre penoso reviver todo o processo relativo ao meu mieloma. Faço-o apenas, porque acredito que esta partilha pode vir a contribuir para, de alguma forma, ajudar doentes, familiares e mesmo médicos, a conviverem com esta doença. Cresci num tempo em que a palavra “cancro” era interdita. Dizia-se mesmo que, de cada vez que a pronunciávamos, estávamos a encurtar em sete anos o tempo que faltava para contrair a doença. Por muito racionais que sejamos, por muito que a ciência tenha avançado, essas marcas permanecem. A expressão “morreu de doença prolongada”, é uma prova disso. Mas a verdade é que se morre de cancro e que o primeiro confronto com a nossa própria morte é indescritível.
Como descobri a doença
Durante vários meses, dei conta da presença de uma quantidade anormal de espuma na urina. Consultei um médico que, através de uma imunoelectroforese sérica e uma análise à urina por imunofixação, verificou que havia resultados anormais no que respeita às “cadeias leves kappa”. Fui então encaminhada para os serviços de hematologia do Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra, onde foi diagnosticado “mieloma múltiplo das cadeias leves kappa, assintomático, num estadio 1”. O diagnóstico foi-me comunicado por telefone. Nunca irei esquecer o local onde soube e o que senti: recusa em acreditar, necessidade de partilhar imediatamente com familiares e amigos e, particularmente, telefonar a um amigo que vivia há mais de dez anos com um mieloma múltiplo. Esperava que me dissesse o que tantas vezes lhe tinha ouvido: “Quando me diagnosticaram um mieloma, disseram-me que a minha esperança de vida seria dois anos. Passaram doze, estou vivo e assisti entretanto à morte de amigos que esperavam viver longos anos”. Senti a necessidade de procurar informação científica que me permitisse perceber o que é um MM, as suas causas e as suas consequências. Houve um momento em que percebi que a quantidade de informação é de tal modo elevada e difícil de entender por um leigo, que decidi fazer tudo o que houvesse para fazer e entregar-me com toda a confiança e toda a calma possível, aos médicos que me acompanhavam. Nesta fase, ler e ouvir relatos de pessoas que passaram por situações semelhantes, ajudou-me também a encarar a situação de uma forma mais positiva e racional. Foi ainda particularmente importante ler Anticancro de David Servan-Schreiber, onde ele conta a sua experiência de médico e investigador que, aos trinta anos, descobriu acidentalmente que tinha cancro de cérebro. Sobreviveu cerca de 20 anos, um tempo muito longo para um cancro tão agressivo. Através das vivências de um homem da ciência e agnóstico, consegui perceber e aprender como é possível conviver com a sombra da própria morte. Consigo ainda hoje seguir alguns dos seus ensinamentos, nomeadamente, cuidados com a alimentação, prática de exercício físico e a procura, por todos os meios ao meu alcance, de uma vida tranquila. O apoio de familiares e amigos foi de tal modo importante que, sem eles, não sei se teria conseguido força para lutar pela vida. Optei por não esconder a doença de ninguém: familiares, amigos, colegas. Sabia que muitos iriam sofrer com isso, mas queria ser eu a dizer-lhes e a transmitir-lhes um sentimento de confiança na ciência, nos médicos e em todos os que estavam comigo. Vivi assim um longo percurso de luta pela vida, com alguns momentos difíceis e outros de muita tranquilidade e confiança em todos os que, dentro e fora das instituições hospitalares, me fizeram sentir sempre acompanhada e confiante. Iniciei imediatamente os tratamentos descritos para casos de mieloma, de que fez parte o auto-transplante de medula óssea. Tudo correu dentro do previsto.
Viver com a doença
Atualmente, apesar de ter conseguido encontrar alguma paz, continuo a observar todos os dias a minha urina e fico ansiosa com o aproximar das consultas de rotina. Penso muitas vezes no que me disse o médico que me acompanha quando as iniciei: “Não se esqueça que tem cancro. Em qualquer altura ele pode querer levantar a cabeça, mas nós cá estamos para lha fazer baixar”. Tenho-me treinado no sentido de ocupar a minha mente apenas com o presente, com o que é real e se está a passar no momento, afastando dela tudo o que são apenas suposições e antecipações. Reconheço que não é fácil, mas vale a pena tentar. Procuro todos os dias estar com amigos, diversificar as minhas atividades e fazer apenas o que me dá mais prazer. Hoje, ao ser levada a reviver esse período da minha vida, não posso deixar de referir como o diagnóstico de cancro e o confronto com a minha própria morte despertaram em mim a atenção às pequenas coisas presentes no dia a dia, que deixámos de ver por tanto convivermos com elas. E, a propósito, gostaria de terminar citando um pequeno excerto do livro Anticancro: “[…] passei a apreciar melhor certas coisas, tais como almoçar com um amigo, coçar as orelhas do Muffet e ouvi-lo ronronar, a companhia da minha mulher, ler um livro ou uma revista na cama à noite, à luz da mesa de cabeceira, assaltar o frigorífico para ir buscar um copo de sumo de laranja ou uma fatia de bolo de café. Pela primeira vez, acho que estou, de facto, a saborear a vida. Apercebo-me, finalmente, de que não sou imortal”.